“Oh tiozin”, a voz interrompeu a conversa com seu amigo, “Só cala a boca, passa o que tivé e fica tudo certo!”
Quando acordou, não esperava ver o cano preto da morte. Ninguém espera. Seria apenas mais um dia normal…
Despertou às 4 da manhã, como de costume. Na cama de casal, só um corpo levantou, calçou seu chinelo e se arrastou vagarosamente até o banheiro. O outro dormia numa cama menos confortável e mais claustrofóbica há 7 anos. Os eufemismos não diminuem a dor.
No banheiro, olhou no espelho e reparou em suas rugas. Se lembrou de um documentário sobre o mundo vegetal e de como é possível estimar a idade de uma árvore pelo número de anéis em seu tronco. Achava irônico que a única forma de contar a idade da árvore seria cortando-a. Lavou o rosto, escovou os dentes, mijou e voltou para o quarto.
Do lado da cama, em cima do criado-mudo, dividindo espaço com a foto de sua esposa, numa moldura de madeira antiga, estava um copo d’água já quente colocado ali na noite anterior. Na primeira gaveta, pegou seu Verapamil, Hidrocloreto de tacrina, Captopril e Oxibutina. Tomou cada com um gole seco da água.
Em passos lentos, caminhou até a cozinha para preparar seu café. Ferveu a água. Preparou o pão. Colocou o pó no coador. Não podia mais margarina, só o queijo branco. Coou o café. Não podia mais açúcar, tomou um gole amargo. Comeu o pão. Olhou para a foto dos filhos ainda moleques pendurada na parede. Terminou o café. Levantou.
Foi até a pia lavar a louça e encarou, pela janela logo a cima da torneira, a madrugada na cidade o tanto que a altura do sobrado permitia. Sentiu o cheiro do orvalho, a brisa leve e fresca, calmo e feliz.
Terminou com a louça e voltou para seu quarto. Ainda com tempo, decidiu se sentar na cama e ler sua Bíblia. Abriu e continuou de onde havia parado na leitura anterior. “O Bom nome é melhor do que um perfume finíssimo, e o dia da morte é melhor do que o dia do nascimento” – Eclesiastes 7:1.
Nunca foi religioso, mas já havia lido a Bíblia algumas vezes. Sua mulher era da Igreja, ele somente a acompanhava. Gostava de algumas passagens que o fizessem pensar e refletir um pouco. Nunca aderiu à doutrina por pensar e refletir demais.
Lembrou da infância. Da casa em que morou, da pequena fazendinha do avô, dos tempos de miséria e fome, dos raros tempos de fartura, de como tinha sonhos, de como ajudava seu pai no campo, de quando tiveram que vender as terras para irem pra cidade. Pensou e refletiu que o dia da morte não poderia ser pior que o dia do nascimento.
Seu pai dizia “Nascemos até virarmos sujeito homem, só depois vivemos e então morremos”.
Passou tempo demais refletindo e pensando. Levantou-se e se vestiu rapidamente, pegou o molho de chaves na cozinha e abriu a porta lateral do sobrado. Desceu os degraus até a frente da mercearia que ficava no andar debaixo e subiu o portão de entrada.
No quartinho no fundo ficava a dispensa com vassoura, espanador, rodinhos, panos, alguns produtos de limpeza. Era 5:12 quando começou a varrer sua lojinha. Às 6:04 havia terminado à pouco, quando duas pessoas chegaram. “Opa, pai, tudo bom? Trouxe seu funcionário do mês!”, disso o primeiro, “Oi vô! Deixa que eu termino de arrumar a loja!”, disse o segundo.
Sempre se deu bem com os filhos e netos, com este principalmente. Sentia que precisava ensina-los alguma coisa sobre a vida, alguma lição que valesse a pena, que significasse algo, que os preparassem para viver antes que ele partisse.
De manhã, o movimento é sempre muito parado. Algumas figuras marcadas passavam por ali quase sempre, como por exemplo Um Cara, que geralmente era seu primeiro cliente, comprava leite, às vezes uma bolacha, trocava uns 5 minutos de conversa e voltava para casa.
De tarde, o movimento é sempre maior. O tempo passava mais rápido, não papeava tanto com os clientes, tinha que lidar com beberrões do bar à frente, às vezes com alguma trapalhada do seu neto ou até com suas próprias. Era o período mais agitado.
De noite, seu neto vai embora às 18h, mas a mercearia fica aberta até às 20h. O movimento voltava a desacelerar e calmaria se instalava. Um amigo de longa data sempre vinha por volta das 18h30 e conversavam até as portas se abaixarem. Depois, ainda dentro da loja, abriam uma cerveja e conversavam por pelo menos mais uma hora. Às 21h se despedia do amigo, subia as escadas de volta para casa e se preparava para dormir.
Não hoje.
Às 19h27, Um Maluco entrou pela porta e disse “Oh tiozin! só cala a boca, passa o que tivé e fica tudo certo! Cê e o Outro Tiozin”
[continua]